[01] A presente invenção refere-se ao campo geral de produção de proteínas recombinantes por técnicas de engenharia genética (DNA recombinante), como também teste imunoenzimático para diagnóstico de esquistossomose, vacina anti-esquistossomótica, e terapia contra doenças alérgicas.
[02] A esquistossomose é uma doença endêmica crônica que afeta mais de 200 milhões de pessoas e 600 milhões vivem em risco de infecção em 76 países no mundo (Ross, 2001). Os principais agentes causadores da esquistossomose são Schistosoma mansoni, Schistosoma japonicum e Schistosoma haematobium. No Brasil, é calculada a existência de aproximadamente 12 milhões de infectados pelo S. mansoni (Kloetzel, 1989). Os principais estados atingidos são Minas Gerais, Bahia, sendo que esta se estende até os estados do Maranhão e Pará.
[03] O Schistosoma mansoni é transmitido para o homem através da água contendo caramujos do gênero Biomphalaria contaminados. No momento da transmissão pode ocorrer uma reação do tipo alérgica na pele desencadeada pela penetração do parasito. Febre, dor de cabeça, calafrios, sudorese, fraqueza, falta de apetite, dor muscular, tosse e diarréia, são os sintomas da esquistossomose em sua fase aguda. O fígado e o baço também aumentam devido às inflamações causadas pela presença do verme e de seus ovos. Se não for tratada, a doença pode evoluir para sua forma crônica, onde as fezes geralmente aparecem com sangue. O doente sente tonturas, palpitações, impotência, emagrecimento e o fígado aumenta ainda mais. Alguns sintomas são decorrentes da obstrução das veias do baço e do fígado, sendo que o desvio do fluxo de sangue pode causar até varizes no esôfago. Nesse estágio, a aparência do enfermo torna-se característica: fraco, mas com uma enorme barriga, o que dá a doença seu nome popular de “barriga d'água”.
[04] As estratégias utilizadas atualmente para o controle da esquistossomose consistem no controle da transmissão e no controle da morbidade. O controle da transmissão visa interromper o ciclo evolutivo do parasito, impedindo que haja infecção de novos casos. No controle da morbidade, o objetivo é impedir o aparecimento de formas hepatoesplênicas. Tal objetivo é alcançado através da realização do diagnóstico e tratamento químico dos pacientes utilizando praziquantel e oxaminiquine. Porém, essas estratégias possuem limitações, sendo a principal delas o elevado custo e o desenvolvimento de resistência às drogas utilizadas para o tratamento (Ismail e cols, 1999; Stelma e cols, 1995). Bergquist e cols. (1998), mostraram que nas últimas duas décadas de tratamento químico contra a esquistossomose, o número de pessoas infectadas continuou o mesmo, deixando clara a necessidade de se desenvolver uma vacina anti-esquistossomótica.
[05] Desde os anos 70, vários estudos têm sido realizados com o objetivo de avaliar a complexidade e imunogenicidade do tegumento do Schistosoma mansoni. O tegumento do verme adulto consiste em um sincicio citoplasmático coberto por uma única membrana de dupla camada (MacLaren e Hockley, 1977). Antígenos de membrana e antígenos associados à superfície presentes no tegumento do S. mansoni tem um grande potencial no desenvolvimento de vacinas por estarem expostos ao sistema imune do hospedeiro, como também são de grande importância nos estudos biológicos da interface parasita- hospedeiro.
[06] Os primeiros estudos relacionados à imunogenicidade do tegumento do S. mansoni foram baseados na vacinação direta de animas com o tegumento do parasito purificado e analises de western blot (Hackett e cols, 1985; Payares e cols, 1985; Simpson e cols, 1985; Simpson e cols, 1986; Smithers e cols, 1989; Smithers e cols, 1990). Estes estudos revelaram alguns antígenos importantes reconhecidos pelo soro de animais vacinados e pacientes com a forma crônica da doença.
[07] Com o avanço das técnicas de biologia molecular, vários antígenos presentes no tegumento do S. mansoni têm sido caracterizados. GAPDH (Goudot-Crozel e cols, 1989), Sm25 (Ali e cols, 1991), Sm22 (Jeffs e cols, 1991), paramiosina (Laclette e cols, 1991), Sm15 (Abath e cols, 1993, 1994), Sm23 (Lee e cols, 1995), actina (Oliveira e cols, 1995), Sm10 (Kohlstadt e cols, 1997), Sm13 (Abath e cols, 2000), Sm16 (Rao e cols, 2002), Sm8 (Abath e cols, 2002), Sm-TSP-1, Sm-TSP-2 e outras proteínas menos caracterizadas (Smyth e cols, 2003) estão descritas na literatura. É importante ressaltar que muitas destas proteínas mencionadas não possuem características de proteínas associadas à membrana (ausência de hélices transmembranas e de sítios para âncoras lipídicas). Algumas especulações mostram que Sm13 e Sm8 podem interagir com algumas destas proteínas permitindo sua ligação na superfície do tegumento (Abath e cols, 2000). Outra possibilidade é que o parasito seja danificado durante a infecção deixando proteínas citosólicas expostas adsorvidas em seu tegumento como parte de sua estratégia para evadir do sistema imune do hospedeiro (Simpson, 1992). Esta peculiaridade nos faz acreditar que este parasita utiliza de algum mecanismo ainda desconhecido para expor proteínas citosólicas no seu tegumento.
[08] As propriedades imunológicas de algumas proteínas de membrana do Schistosoma mansoni têm sido investigadas desde a última década. Koster e cols (1993), caracterizaram a imunoreatividade do soro de pacientes contra o antígeno de superfície Sm23, mostrando que os títulos de anticorpos anti-Sm23 em pacientes infectados varia muito. A Sm13 foi investigada por Abath e cols (2000), onde foi verificada a presença de anticorpos anti-Sm13 no soro de pacientes esquistossomóticos. A Sm25 recombinante foi testada em ensaios de vacinação em camundongos por Suri e cols (1997), produzindo altos títulos de anticorpos, mas sem nenhuma proteção após desafio com cercárias.
[09] Nas últimas décadas, os avanços da ciência envolvendo os projetos genomas e transcriptomas têm nos proporcionado muitas informações importantes na identificação de antígenos para o desenvolvimento de vacinas, diagnóstico e entendimento da relação parasita-hospedeiro em diversas doenças. O transcriptoma do Schistosoma mansoni tem sido bem caracterizado pelo grupo de Verjovisk-Almeida e cols (2003) e pela Rede Genoma de Minas Gerais. Como verificado por estes grupos, candidatos vacinais incluem proteínas que são preferencialmente expostas na superfície, como também expressas em estágios do parasita que infectam mamíferos. Proteínas ortólogas às toxinas, receptores para fatores do hospedeiro, moléculas envolvidas em adesão celular, proteínas de membrana ou expostas à superfície e enzimas são postuladas como sendo candidatos potenciais para o desenvolvimento de uma vacina.
[10] Estudos realizados pelo nosso grupo de pesquisa nos levaram ao isolamento e identificação de uma proteína candidata ao desenvolvimento de diagnóstico e vacina contra a esquistossomose, denominada Sm29, definida pela SEQ ID No1. Esta seleção foi feita através de análises genômicas de seqüências classificadas com ferramentas de bioinformática. Estas utilizam os bancos de dados do BLAST (Basic Local Alignment Search Tool), KOG (Eukaryotic Orthologous Groups) e UNIPROT (Universal Protein Resource) / GOA (Gene Ontology Anotation) como fonte de informação. A identificação empírica de regiões ou domínios típicos de proteínas de membrana, secretadas ou citosólicas são de grande importância para um estudo mais próximo da estrutura e funções reais dos antígenos selecionados. Peptídeo sinal, sítios de ancora GPI, região transmembrana e sítios de glicosilação são regiões constantemente presentes em proteínas exportadas. A procura de domínios conservados nestas proteínas também é capaz de revelar características importantes para a determinação da função e importância biológica destes antígenos selecionados.
[11] As análises da estrutura primária foram realizadas utilizando o ExPASy (Expert Protein Analysis System) (Gasteiger e cols, 2003). A presença do peptídeo sinal, definido pela SEQ ID No2, que correspondente aos aminoácidos 01 a 26 da proteína Sm29, definida pela SEQ ID No1, foi verificada através do programa SignalP 3.0 (Bendtsen e cols, 2004; Nielsen e cols, 1997). Hélices transmembranas e sítios de âncora GPI foram analizados utilizando TMHMM e DGPI (Kronegg e cols, 1999), respectivamente. Sítios de glicosilação foram identificados através do YinOYang (www.cbs.dtu.dk/services/YinOYang). Finalmente, SYFPEITHI (Rammensee e cols, 1999) foi usado na predição de epitopos de ligação ao MHC de Classe II humano, ou HLA.
[12] O antígeno Sm29 (SEQ ID No1) apresenta peptídeo sinal N- terminal de 26 aminoácidos (SEQ ID No2, que correspondente aos aminoácidos 01 a 26 da proteína Sm29, definida pela SEQ ID No1), 3 sítios de glicosilação e uma hélice transmembrana C-terminal (SEQ ID No3, que correspondente aos aminoácidos 170 a 191 da proteína Sm29, definida pela SEQ ID No1). Além disso, possui vários peptídeos de ligação aos MHCII humanos ou HLAs (HLA DRB1*0101, HLA- DRB1*0301 (DR17), HLA-DRB1*0401 (DR4Dw4), HLA-DRB1*0701,HLA-DRB1*1101 e HLA-DRB1*1501 (DR2b) (Tabela I), mostrando que este é capaz de induzir uma resposta imune efetora no combate a esquistossomose, envolvendo produção de anticorpos e ativação de linfócitos T. Tabela 1 - Peptídeos de alta afinidade de ligação ao MCH II humano com maior promiscuidade entre os HLAs analisados. Os aminoácidos ancoras estão em negrito.
[13] Análises de transcrição da Sm29 nos estágios do ciclo do parasito que infectam humanos mostram que esta é expressa nas fases de verme adulto e na fase pulmonar ou esquistossomulo do parasito (Figura 1: Análise da transcrição da Sm29 nas fases do S. mansoni infectantes para humanos através da PCR utilizando iniciadores específicos para a Sm29 e bibliotecas de cDNA das fases analisadas. P= padrão, 1= controle positivo, 2= controle negativo, 3= ovo, 4= verme adulto, 5= esquistossomulo, 6= cercária). Desta forma, podemos inferir que este antígeno é capaz de combater a esquistossomose em fases recentes da infecção, não permitindo o desenvolvimento de formas mais severas da doença.
[14] Ensaios de imunolocalização utilizando soros de animais experimentais vacinados com a Sm29 recombinante mostram que esta proteína está presente no tegumento do verme adulto do S. mansoni (Figura 2: Imunolocalização da Sm29 no verme adulto macho do S. mansoni. A= Imagem feita por microscopia confocal fluorescente, B= Imagem correspondente de contraste de interface diferencial). Desta forma, o sistema imune pode reconhecer facilmente este antígeno e consequentemente o S. mansoni, e desencadear uma resposta imune efetora no combate do parasita, eliminando os vermes adultos e diminuindo as possibilidades de reprodução e eliminação de ovos.
[15] Estudos em pacientes residentes em áreas endêmicas para a esquistossomose mostraram resultados promissores para o desenvolvimento de um teste diagnóstico e uma vacina contra a esquistossomose. Utilizando a técnica de ELISA, verificamos uma alta produção de anticorpos do isotipo IgG específicos para a Sm29r em pacientes esquistossomóticos comparados a indivíduos saudáveis sem histórico da doença, o que permite a diferenciação entre indivíduos doentes e indivíduos saudáveis (Figura 3: Perfil de IgG total específicos anti-Sm29 em pacientes de áreas endêmicas para a esquistossomose comparados a indivíduos saudáveis. I= Infectado e NI= Não-infectado. (*) Estatisticamente significativo em relação ao grupo não-infectado). Também verificamos através da técnica de ELISA uma elevada produção de anticorpos dos isotipos IgG1 e IgG3 anti-Sm29 em indivíduos resistentes à esquistossomose (Figura 4: Perfil de IgG1 (a) e IgG3 (b) específicos anti-Sm29 em pacientes de áreas endêmicas para a esquistossomose. I= Infectado e RR= Resistente a reinfecção. (*) Estatisticamente significativo em relação ao grupo infectado). Estes últimos dados mostram que anticorpos específicos contra a Sm29r estão relacionados à resistência contra a infecção e reinfecção da esquistossomose.
[16] Além disso, ensaios pré-clínicos de vacinação em animais experimentais revelaram a produção de altos níveis de anticorpos específicos contra a Sm29 e uma redução do número de vermes adultos em torno de 31,22% e 56,71% (com e sem adjuvante, respectivamente) em animais vacinados com a Sm29 comparados a animais não- vacinados (Tabela 2) e uma redução de 37.6% e 60% na ovoposição (com e sem adjuvante, respectivamente) (Figura 5: Contagem de ovos no intestino de cobaias vacinados com a Sm29 recombinante e desafiados com o S. mansoni. Contagem feita após 45 dias do desafio).Tabela 2 - Imunidade protetora em camundongos C57BL/6 induzida pela vacinação com a Sm29 recombinante mais adjuvante completo e incompleto de Freud.
[17] Outro aspecto interessante observado na esquistossomose é a imunoregulação, onde pacientes esquistossomóticos apresentam uma modulação do sistema imune. Esta é uma estratégia encontrada em várias parasitoses causadas por helmintos que diminui a patologia da doença e aumenta a longevidade do parasita no hospedeiro (Maizels e Yazdanbakhsh, 2003). Experimentos avaliando a imunorregulação observada em pacientes e animais experimentais revelaram uma alta produção de IL-10, citocina responsável pela modulação da resposta imunológica. A supressão de uma resposta imunológica do tipo Th2 está diretamente envolvida na diminuição de alergias, sendo que este fato já foi verificado nas áreas endêmicas para a esquistossomose, onde pacientes tem uma diminuição da reatividade contra alérgenos e apresentam formas mais leve da asma (Araújo e cols, 2006).
[18] A avaliação da produção de IL-10 em pacientes asmáticos infectados com Shistosoma mansoni e em pacientes somente asmáticos mostraram que este antígeno é capaz de induzir uma alta produção desta citocina em ambos os grupos de pacientes (Figura 6: Avaliação da produção de IL-10 em pacientes asmáticos (a), infectados com Schistosoma mansoni e asmáticos (b) e na presença ou ausência do antígeno Derp-1 (c). * p<0.05 comparado com o meio). Estes dados mostram que a Sm29 é capaz de estimular células do sistema imune inato, uma vez que os pacientes asmáticos responderam tão bem quanto os pacientes asmáticos e esquistossomóticos. Ademais, células do sangue periférico de pacientes asmáticos apresentaram uma maior produção de IL-10 quando estimulados com o antígeno 1 do ácaro D. pteronyssinus (Derp-1, alérgeno) juntamente com a proteína Sm29, do que com o alérgeno Derp-1 sozinho. De acordo com esses dados, verificamos que a Sm29 tem um grande potencial de uso no tratamento de doenças alérgicas.
[19] A produção da proteína Sm29 recombinante é realizada utilizando o vetor pET21a e a bactéria E coli. A purificação da Sm29 recombinante é feita em sistema de afinidade para cauda de 6xHistidina. Esta metodologia permite uma produção em larga escala com a vantagem de se obter um material altamente purificado, eliminando proteínas contaminantes indesejáveis presentes nos cultivos celulares.
[20] O kit para diagnóstico para diagnóstico da esquistossomose consiste na metodologia de detecção de anticorpos IgG específicos contra a Sm29 no soro de pacientes sintomáticos para a esquistossomose utilizando a técnica de ELISA (Enzyme-Linked Inmunosorbent Assay). O ensaio imuoenzimático é descrito em 7 etapas, de acordo com a figura 7 (Figura 7: Teste imunoenzimático para esquistossomose IgG - Sm29). Para tal, (1) placas de microtitulação de 96 poços são adsorvidas por 16h à 4°C com 100 μl de Sm29 recombinante numa concentração de 5 μg/ml em tampão 0.1 M carbonato bicarbonato (pH 9.6) por poço. A seguir, o sobrenadante é desprezado e as placas bloqueadas (2) com 10% de soro fetal bovino em PBS (pH 7.4) por 2 h à temperatura ambiente. Após bloqueio, as placas foram lavadas 3x com PBS adicionado de 0,05% tween20 (PBST) e após secagem, os soros diluídos (1:50) (3) foram adicionados em duplicata 100 μl por poço e incubadas por 1 h à temperatura ambiente. Após incubação, as placas são lavadas 3x com PBST e (4) adiciona-se 100 μl por poço de anticorpo de camundongo anti-IgG humano conjugado à peroxidase na concentração de 1:10000 e incubado por 1 hora a 37°C. Após incubação, as placas foram lavadas e reveladas (5) com orthophenyl-diaminobenzidine (OPD) acrescido de 0.05% peróxido de hidrogênio em tampão citrato 0,1M pH3-5. A revelação é interrompida (6) com 5 % H2SO4 após 30 min de incubação. A leitura do teste (7) é feita a 492 nm.
[21] A metodologia usada para a vacinação de animais utilizando a Sm29r e adjuvante de Freund completo e incompleto é descrita em 4 etapas: (8) O preparo da vacina é feito com 10-50 μg de proteína Sm29r acrescida ou não de adjuvante de Freund. (9) A vacina é aplicada através de injeção via subcutânea utilizando seringa com agulha 13 x 0.45. (10) Após 15 dias é aplicada a primeira dose de reforço com 10-50 μg de proteína Sm29r acrescida ou não de adjuvante de Freund e após 30 dias da primeira dose (11) é aplicada a segunda dose de reforço com 10-50 μg de proteína Sm29r acrescida ou não de adjuvante de Freud.